Pela Decima Vez

Pela Décima Vez
Noel Rosa

A letra narra o que um homem sofre por amar uma mulher “homerenga”, ou seja, uma mulher que tem vários relacionamentos ao mesmo tempo. O protagonista deve ter tomado um belo “nó-de-coxa” e se viciou na danada da mulher.

Primeira estrofe, linhas 1 a 7:

Jurei não mais amar
Pela décima vez
Jurei não perdoar
O que ela me fez
O costume é a força
Que fala mais forte do que a natureza
E nos faz dar prova de fraqueza
Na primeira estrofe, linhas 1 a 4, o Noel alinhava o que vem no espírito da letra. O poeta diz: “Jurei não mais amar pela décima vez. Jurei não perdoar o que ela me fez”. O verbo amar está deslocado de seu sentido. Não se trata de um homem que verdadeiramente, sente ternura, afeição. É uma justificativa para não se afastar dela. Ele se justifica ao dizer que não a deixa por amor, mas na verdade a razão é outra. E como o amor perdoa tudo, ele segue se enganando, pela décima vez. A segunda frase negritada confirma a tese do roteiro. Ele jura não mais perdoar o que ela fez pela décima vez. E o que ela fez que carecia de perdão? Transou com outro cara, pela décima vez?

Ainda na primeira estrofe, linhas 5 a 7, o protagonista confirma a orientação da letra. “O costume é a força que fala mais forte do que a natureza e nos faz dar prova de fraqueza”. O Noel escolheu a palavra costume que é um hábito que se pratica freqüente e regularmente. Além do que costume não tem conotação pejorativa. Vício é a mesma coisa, porém é termo pejorativo. No dicionário do Houaiss, somente na sexta acepção é que vício aparece como: “hábito ou costume persistente de fazer algo; mania”. Em todas as demais aparece como sendo uma deformação de caráter, ou seja, com conotação pejorativa. No dicionário do Aurélio a palavra vício é pejorativa em todas as acepções. Sem nenhuma exceção. Ora, Noel que deve ter sido trocado por outros homens várias vezes ao longo de sua vida, não iria vestir a carapuça de ser viciado no sexo com a tal mulher que não lhe era exclusiva. Qual a solução dele? Amenizar o termo.

O vício do sexo com a mulher da história é a força que fala mais alto que a natureza do homem de não tolerar a traição. E como o vício é irresistível, ele dá prova da fraqueza de não por um fim na relação que tinha com ela e que o fazia sofrer a ponto de chorar protegido pela fumaça do cigarro.

Segunda estrofe, linhas 8 a 16:

Joguei meu cigarro no chão e pisei
Sem mais nenhum
Aquele mesmo apanhei e fumei
Através da fumaça
Neguei minha raça
Chorando a repetir
Ela é o veneno
Que eu escolhi
Para morrer sem sentir
A segunda estrofe, linha 8 a 16, é um pensamento único, como se fosse falado (ou narrado) de um único fôlego. Claro que não é assim que a música é cantada, ele a escreveu com o ritmo que a letra pede. E nem deverá ser diferente. O roteiro visa revelar o que possa estar nublado e não propõe, normalmente, à subversão de uma obra. Ainda mais em se tratando da obra de Noel Rosa. Essa atitude beiraria a heresia.

Linha 8 “Joguei meu cigarro no chão e pisei”. A linguagem poética usada por ele é perfeita. Dá pra ver a cena. Um homem após um ataque de tosse (ou de uma crise de hemoptise) joga com raiva o cigarro no chão pisa nele, o esmaga, e jura: “nunca mais vou fumar”. Contudo, “O costume é a força que fala mais forte do que a natureza”. E volta a fumar, pela décima vez.

O cigarro pode matar o corpo do fumante lentamente. O vício que o ligava àquela mulher o matava moralmente de forma igualmente lenta. Então, ele ‘sem mais nenhum (cigarro-mulher) aquele mesmo apanhei e fumei”, não se sentia o protagonista em condição de refazer a sua vida amorosa, então, volta para a mesma mulher (o mesmo cigarro pisoteado). Como ele tratava essa mulher? Também a pisotearia?

Nesta frase negritada acima, o verbo abaixar está implícito. Se ele havia jogado o cigarro no chão e pisado nele, somente se abaixando é que poderia apanhá-lo e fumá-lo. O verbo abaixar está suprimido por representar o sentimento ocultado pelo poeta. O sentimento de se rebaixar moralmente ao retornar para aquela mulher, pela décima vez. E ele voltava por não ter outra que a substituísse no que só ela lhe dava: a saciedade do vício. Caracas, ela devia ser muito boa de cama. Êta Noel. E aqui a cena inteira: “Joguei meu cigarro no chão e pisei”. “Sem mais nenhum aquele mesmo apanhei e fumei”. Linhas 8 10.

Linhas 11 a 16, “Através da fumaça neguei minha raça chorando a repetir, ela é o veneno que escolhi para morrer sem sentir”. A analogia que o poeta cria é maravilhosa. O fato de ele ser viciado permite à analogia unir coisas tão diferentes, mas que se assemelham por levá-lo à morte. O cigarro poderia vir a matá-lo fisicamente e a mulher o estava matando moralmente. Todo vício é inebriante. Por si só o vício não é ruim. A conseqüência do vício é que pode fazer dele um elemento fatal.

A mulher o inebriava, lhe tirava o chão. Mas mesmo assim, “através da fumaça” o protagonista chora. E ao chorar, impotente ante a força do vício – ou do costume, ele nega a sua condição de macho. “Neguei minha raça chorando a repetir”.

Ele declara sua impotência, sua ausência de forças para romper com o que não era bom para ele. E declara: “…Ela é o veneno que eu escolhi para morrer sem sentir”. Aqui não parece ser mais apenas a morte moral. O desgosto pelo amor malfadado poderia levá-lo a um estado de espírito que o fizesse pensar: “viver para que?”. Nesse caso os cuidados com a saúde não teriam nenhum sentido e a morte física o alcançaria rápido. Como de fato aconteceu.

Terceira estrofe, linhas 17 a 24:

Senti que o meu coração quis parar.
Quando voltei
E escutei a vizinha falar.
Que ela só de pirraça
Seguiu com o praça
Ficando lá no xadrez.
Pela décima vez ela está inocente
Nem sabe o que fez
Terceira estrofe, linhas 17 a 24. Aqui Noel Rosa deve estar falando dele mesmo e de Ceci. Quando ele diz nas linhas 23 e 24: “Pela décima vez ela está inocente nem sabe o fez” ele está dando provas de que conhecia a força da índole das pessoas. Como ele poderia culpar aquela mulher que “só de pirraça seguiu com o praça ficando lá no xadrez”, ou seja, saiu mais uma vez com qualquer um para transar. Como culpá-la se ela somente fazia o que era da natureza dela fazer. Ela era uma prostituta e ele sabia disso. Como condená-la?

Não importa essa questão racional. Ele compreendia a natureza, vamos dizer assim generosa da mulher, contudo essa compreensão não o poupava da dor visceral que o torturava. A letra diz: “Senti que o meu coração quis parar quando voltei” (de mais uma noitada?) “e escutei a vizinha falar que ela, só de pirraça” (ela estava de saco cheio de esperar por ele – pela décima vez?) “seguiu com o praça” (sujeito indeterminado, podia ser qualquer um. Afinal ela saiu só de pirraça) “ficando lá no xadrez” (entenda-se hotel ou motel ou o quartinho miserável desse qualquer um).

Uma consciência ele tinha: não podia esperar nem desejar fidelidade física de uma profissional do sexo como ela. E se resigna : “Pela décima vez ela está inocente, nem sabe o que fez”. Era a profissão dela que fazia com que ela agisse daquela forma. E ele como viciado sabia melhor do que ninguém que: “O costume é a força que fala mais forte do que a natureza e nos faz dar prova de fraqueza”

 

Pela décima vez

Noel Rosa

Jurei não mais amar
Pela décima vez
Jurei não perdoar
O que ela me fez
O costume é a força
Que fala mais forte do que a natureza
E nos faz dar prova de fraqueza
Joguei meu cigarro no chão e pisei
Sem mais nenhum
Aquele mesmo apanhei e fumei
Através da fumaça
Neguei minha raça
Chorando a repetir
Ela é o veneno
Que eu escolhi
Para morrer sem sentir
Senti que o meu coração quis parar.
Quando voltei
E escutei a vizinha falar.
Que ela só de pirraça
Seguiu com o praça
Ficando lá no xadrez.
Pela décima vez ela está inocente
Nem sabe o que fez