Sozinha em seu camarim, diante do espelho, está Andreia Carneiro. A luminosidade é pouca, quase penumbra. Olha sua imagem no espelho sem qualquer preocupação.
Tudo está pronto para o espetáculo: maquiagem; luz; figurinos; cenário; aquecimento da voz; passagem do som. A intérprete espera o momento de sua entrada no palco.
Andreia está relaxada, serena, em silêncio. O espelho, que antes pouco mostrava em razão da fraca luz ambiente, começa a se encher de cores que, de forma impetuosa e caótica, se movimentam delirantemente. Ela sorri. O espelho se transforma numa tela tridimensional e a partir daí alguns importantes momentos de sua vida desfilam, ali diante de seus olhos, como lembranças esmaecidas que vão ganhando força vital e preenchendo o silêncio e a penumbra do camarim.
As imagens que se formam vêm de um passado distante. Ela precisa de uma fração de tempo para identificar a cena e forçar a memória até identificar a si mesma ainda menina andando entre outras crianças vestidas com roupas escolares.
à o Colégio Asa Norte, o CAN. Ali ela passou sua adolescência. à o ano de 1970. A menina magrinha de olhos expressivos e vivos, atentos a tudo, é atraída pela música que vem do interior de um ônibus estacionado no pátio do colégio. Ela nunca havia ouvido nada parecido. Em casa ouvia muita música de rádio além das tocadas na eletrola de seus pais.
Aquele som, porém, era uma novidade que a hipnotizava e encantava. Todos cantavam a mesma canção. Ela conhecia aquela música, mas as vozes eram diferentes umas das outras. A soma dessas vozes diferentes era o som mais lindo já ouvido por ela. A menina se aproxima cada vez mais, até ficar bem perto da porta do ônibus. Começa a cantar bem baixinho, temendo atrapalhar. Aos poucos aumenta o volume de sua voz, só um pouquinho, por timidez e respeito.
Um homem se aproxima dela e diz:
– Sou o Nelson Mathias, professor de música da escola. Você está nas minhas turmas?
– Não senhor, eu pratico esportes.
– Gostei da sua voz. Apareça no ensaio de amanhã lá na sala de música.
Um ano mais tarde Andreia já estava no naipe dos contraltos do Coral do SESI de Brasília no qual o Maestro Nelson Mathias acumulava as funções de regente e arranjador.
“Ah! Se a juventude que essa brisa canta, ficasse aqui comigo mais um pouco.”
Enquanto tudo no camarim permanecia inalterado, imóvel, as lembranças de Andreia tornavam-se cada vez mais vivas. Ela era o que ela via dentro daquele espelho. Aromas, brisa, sons, sensações, melodias, harmonias, poesias, contatos físicos, emoções, tudo possuía uma composição única e concreta. Não havia imaginação e sim contemplação.
“Se todos fossem iguais a você…”
Foi sob a orientação de Nelson Mathias e de Célia Bretanha, a preparadora vocal, que Andreia teve a concepção da base de sua formação artística. Aprendeu o valor da disciplina; assiduidade; percepção musical; técnica vocal; a presença e a postura no palco. Vivenciou o comprometimento com os outros artistas; o cantar sozinha e o ouvir em grupo. Assimilou o que era ter destemor, com simpatia, diante de inumeráveis tipos de público. Tudo apreendido ao custo de incontáveis horas de ensaios e mais ensaios, para mais tarde saborear os frutos colhidos nos muitos festivais internacionais e nacionais dos quais o Coral do SESI participou em várias capitais brasileiras. Quanta gratidão aos mestres e aos colegas que dividiram os ensaios, os camarins, as viagens e os palcos com ela.
“Ã tão tarde, a manhã já vem. Todos dormem a noite também, só eu velo por você meu bem.”
Momentos de sua vida, mesmo os mais importantes, surgiam e desapareciam em flashes de vertiginosa velocidade como se aqueles acontecimentos não fossem relevantes. Apenas o universo da arte formava imagens que independiam do tempo para serem revividas, degustadas.
“E o tempo se rói com inveja de mim, me vigia querendo aprender como eu morro de amor pra tentar reviver.”
No vórtice de cores e movimentos daquele espelho inexplicável, forma-se a realidade de um palco de teatro em 1992. Em cena o espetáculo “Nosso Vinícius Nossas Vozes” apresentado pelo Grupo Vocal Nossas Vozes que havia sido fundado em 1988 por parte dos coralistas oriundos do Coral do SESI, entre estes, Andreia Carneiro.
Naqueles primeiros quatro anos de existência o “Nossas Vozes” buscou formas de aliar o canto coral com apresentações menos formais, mais performáticas, porém, mantendo a fidelidade à condição de ser o Nossas Vozes um grupo de canto coral. Tarefa nada fácil de concretizar. Andreia e outros do grupo idealizaram, então, um espetáculo que mostrasse em cena exatamente esta dificuldade. Um ator que representava o roteirista, na peça o narrador, concebia suas idéias e as revelava ao público. As idéias aceitas integralmente pelo elenco, os coralistas, recebiam destes uma aprovação na forma de aplausos. Outras vezes o revelado pelo narrador abria polêmica entres os atores-cantores até que chegassem a um consenso. Quando algumas idéias eram negadas por todos, as vaias eram líquidas e certas. Das idéias aceitas pelo grupo surgia o repertório que o “Nossas Vozes” cantava à capela ou acompanhado pelo piano que compunha o cenário.
Alguns minutos após a abertura da peça o público percebia, pela coreografia e pelas marcas de direção, que tudo se passava na cabeça de um personagem em pleno processo criativo. Mesmo agora, vários anos passados no mundo real, Andreia sentiu-se gratificada com a interação entre o público e a representação. Não, não era apenas gratificação. Era algo muito próximo do que o devoto experimenta quando intui que alcançou o alvo de sua devoção. Os deuses do Teatro haviam conquistado mais uma devota.
“Quem de dentro de si não sai vai morrer sem amar ninguém.”
Quando uma relação interpessoal finda, geralmente as pessoas envolvidas nela são as que menos sabem dos motivos concretos para a separação. Normalmente quem não participou da intimidade desse relacionamento é que apresenta uma lista completa, e infundada, das possíveis razões. Assim é nos casamentos, nas amizades e nos grupos artísticos.
Andreia deixou o Grupo Vocal Nossas Vozes em 1994. Mesmo que ela reabrisse cortinas, vasculhasse mobílias, retornasse no tempo relembrando os sonhos, dela e do grupo, a tentativa de encontrar um motivo para a separação seria vã. Como diria o Ivor Lancellotti.
“Saudade, torrente de paixão. Emoção diferente que aniquila a vida gente. Uma dor que não sei de onde vem.”
A inquietação de um artista é uma benção ou será uma maldição? E quando vários artistas encontram-se numa mesma aflição para definir o que fazer com sua arte e seus talentos, suas vozes? O caminho mais difícil, porém único, é trilhar novos rumos que aquietem seus corações e façam, novamente, suas vozes cantarem. Foi o que fizeram vários dos coralistas do SESI e do Nossas Vozes. Nasce o Coral Brasília. O ano é 1995.
Andreia vê magicamente suas lembranças tomarem forma naquele espelho de camarim. Seus olhos umedecem, seus lábios sorriem, seu coração transborda de orgulho e alegria por ter participado da formação desse Coral que ainda encanta as platéias do mundo. Ano após ano o grupo escolhe o repertório com que irá apresentar pelos palcos da América Latina e da Europa. Para cada projeto um maestro. A cada temporada um desafio novo. As apresentações rendem muitas premiações ao Coral e permitem que os coralistas conheçam boa parte do mundo. Quantas platéias européias se surpreenderam, e ainda se surpreendem, com a forma viva e quente com que o Coral Brasília se apresentou e ainda se apresenta.
Andreia está em êxtase com as imagens que vê e com as músicas que a assaltam sem se questionar como podem estar ali refletidas no espelho. Que importa a origem de um presente se ele nos chega como benção?
A vida assume seus próprios rumos a despeito dos nossos planos. Entregar-se à corrente do rio da vida, seguir a intuição, não temer os desafios fazem parte das características de quem sobe em um palco. Arte sem risco não é arte, é burocracia. Sobre a intuição caberia falar: este ente não se pode tocar, apenas tangenciar; intuição é aquele fragmento de tempo que nos chega e depois se perde, nos escapa, mas nos deixa fecundados, prenhes de possibilidades para novas etapas da vida.
Em 1998, já residindo no Rio de Janeiro, Andreia se prepara para a carreira solo. Faz o curso de extensão profissional na Escola de Música Vila Lobos onde descondiciona a técnica do canto coral, onde sua voz deveria se unir, se amalgamar aos demais contraltos. Agora ela busca a liberdade e o risco do solo. Uma voz que só pode contar com o violão. Andreia buscou a intimidade da voz e do violão com seus riscos. Buscou apresentar-se no trapézio sem a rede de segurança que as outras vozes do naipe propiciam. Ã uma outra vida artística. Mais um recomeço. Mais um flutuar nas correntes da vida. Sempre.
Mas ainda faltava algo. A necessidade de ler e escrever com mais desenvoltura as partituras musicais. Afinal, para dialogar com os músicos era necessário falar uma linguagem comum: a das partituras. Assim entra para a UNIRIO e se forma em teoria e prática musical. Passadas essas etapas preparatórias chega o momento da prova de graduação. A solução encontrada é a primeira apresentação como solista. O lugar mais familiar e confiável seria naturalmente Brasília. E é na Sala de Espetáculos da ANATEL que faz seu primeiro show na nova carreira. Mas Brasília era sua casa, repleta de amigos e de incentivos. Andreia precisava se por à prova. Qual a melhor escolha? Um lugar sem laços.O país escolhido foi a Alemanha para onde foi pela primeira vez com o apoio do Ministério das Relações Exteriores. Era 2001 e ainda hoje Andreia agradece ao incentivo recebido. Após esta debutação mais duas outras apresentações aconteceram. Mas faltava o Brasil.
O Brasil é tão repleto de talentos que merece um preparo adicional. Assim, Andreia busca a formação de atriz. Em princípio sua intenção não era a de vivenciar personagens em palcos. O que ela queria era robustecer sua técnica de interpretar. Encontrar dentro de cada letra de música um subtexto onde pudesse revelar a poesia musicada das canções. Em 2006 inicia o curso de formação de atores profissionais no Casa de Cultura Eduardo Cabús, onde se forma um ano depois.
Andreia está com mais bagagem profissional.E agora, para onde ir? Que rumo tomar? Melhor é esperar que a vida escolha o que fazer a seguir.
“Largar desse cais ir sem direção. Seguir os ventos que clamam por mim. Tecer minhas teias com minhas mãos. Sugar as entranhas desse chão meu fim.”
A imagem que se forma no espelho do camarim é panorâmica, ampla, como as imagens filmadas com as lentes no alto de uma grua. A estrada é sinuosa e cercada pela mata atlântica. Um carro branco vai do Rio de Janeiro para Lumiar, na serra de Friburgo. à uma tarde de inverno com o céu limpo e imaculado como o leito de nubentes. E é nesse leito que um casamento se consuma. Em meio à s discussões sobre a beleza da música latino-americana, o CD player toca Lúcio Alves. Tudo cessa quando o ídolo canta. O CD é No Palco. O último trabalho do magnífico Lúcio Alves.
Andreia e seu acompanhante, que escreveu posteriormente o Espetáculo Enquanto a Vida Passa – Uma Homenagem a Lúcio Alves, são tomados por um desejo incontrolável de levar o talento e a alma do Lúcio para o palco.
Eduardo Cabús, a quem para sempre seremos gratos, disponibilizou e dirigiu a primeira montagem deste espetáculo, que à época foi intitulado: “Lúcio Alves – Enquanto A vida Passa”. Depois dessa, outras duas encenações foram realizadas, sendo a última delas no Teatro Municipal Café Pequeno do Leblon em 2010.
“Pra mim, basta um dia. Não mais que um dia. Um meio dia.”
Entre a segunda e a terceira encenação do espetáculo em homenagem ao Lúcio Alves uma nova obra se apresenta. A construção do CD Confidências no qual são apresentadas nove músicas inéditas e três consagradas de Noel Rosa. Que apresentamos neste site.
As imagens do espelho cessam. Nele apenas a imagem refletida de Andreia que mais uma vez revisa seu visual antes de entrar em cena para a apresentação do Show Confidências. Embora o espelho só reflita a sua própria imagem, Andreia ouve vozes no camarim. Quando dá as costas para o espelho e olha para o interior do camarim Andreia vê todos os que participaram da criação CD Confidências. Estão todos ali, Ã sua volta. Tridimensionais em sua presença, mas ausentes fisicamente. Seus olhos os vêm, seu coração os sente, seus ouvidos os escutam. O tempo se embaralha, perde a linearidade e se apresenta ora adiantado, ora atrasado. A casa do produtor Carino, onde Andreia foi apresentada aos autores das músicas e ao arranjador Cristóvão Bastos, se mistura com o ambiente do estúdio onde o CD foi gravado. O Guinga reaparece em sua alegria de menino após gravar o “Ãltimo Desejo”, rindo e brincando quando gravou a voz guia.
Maurício Maestro, sério e competente, permanece por horas incontáveis fazendo as cinco vozes de “Anjo de Papel”, que depois de gravadas parecem um coral masculino. Quanta beleza. Quanta saudade.
As gargalhadas durante as gravações com as piadas do produtor Carino e do Fábio Motta se reproduzem na mente de Andreia e ela põe a mão na boca temendo ter gargalhado com suas lembranças.Tudo é agora. Só existe o sempre.
Uma voz de fora do camarim traz Andreia de volta ao momento atual: “Andreia, os músicos estão nos seus lugares. A introdução da primeira música vai ser tocada em dois minutos. Bom espetáculo”. “Merda!”.
“Enquanto a vida passa, eu passo a minha vida pensando em você.”
Essas são as imagens do passado e do presente. As do futuro hão de se formar no espelho dos olhos de Andreia “Enquanto a Vida Passa”, como diria o ídolo e inspirador de sempre, o mestre Lúcio Alves.