Sonhos e Planos

Sonhos e Planos
Ivor Lancellotti

O sentimento que mais se destaca nesta letra é a solidão. A realidade, o mundo concreto, o dia a dia, já não são portos onde ele possa ancorar. Os sonhos são em verdade recordações, como está mais revelado na primeira estrofe. Contudo, as lembranças não são apenas boas. Há lembranças, ou sonhos, que fazem o sonhador antever a morte. Ou será que ela a está desejando? Linhas 12 a 14: “A lágrima de chumbo insiste navegar. E Eu vejo um barco branco me levar”.
Na mitologia, o símbolo do barco está ligado à morte. A mitologia grega, e também a romana, falavam do rio Aqueronte (o rio do infortúnio) que possuía as águas violentas e cinza-escuras. Neste rio havia um barqueiro, Caronte, que transportava as almas dos mortos para as regiões destinadas a eles. Contudo, era necessário que os mortos levassem uma pequena moeda de cobre (óbolo), o preço cobrado por Caronte, para fazerem a viagem. Quem não tinha a moeda era condenado a vagar nas margens do rio Aqueronte por cem anos. Por isso, era costume colocar-se uma moeda dessas sob a língua dos mortos. Em sua “A Divina Comédia” Dante fala desse barqueiro e do rio Aqueronte. As roupas e o barco de Caronte eram escuros, lodosos, de um cinza pesado e denso. Na letra o Ivor fala: “E eu vejo um barco branco me levar”. O contraste é nítido e poderoso. O protagonista pode querer morrer, contudo, pretende que a morte o leve a lugar bem diferente daquele destinado aos passageiros de Caronte.
Após esta introdução vamos ao roteiro da letra.

Primeira estrofe, linhas 1 a 7. É a parte dos bons sonhos, por assim dizer. A primeira linha (linha 1) já mostra que o que importa são os sonhos, apenas os sonhos. Ele diz: “no mais sonhos e sonhos”. No mais é uma expressão de exclusão. Ou seja, as pessoas trágicas quando falam de suas desgraças, depois de discorrerem sobre todas as mazelas, dizem: bem no mais tudo bem. O protagonista está alertando que sua vida está uma tragédia, porém, no mais restam os sonhos e os sonhos, ou seja, só restam sonhos.
As linhas 2 a 7 revelam o sonho que ele gosta de sonhar. Uma lembrança de um ator de amor físico. De sexo bem feito e que deixou saudade. O jogo cênico usado é lindo. Um abajur lilás rodando como um tonto (como os casais numa dança sexual tórrida). “E esse abajur lilás rodando feito um tonto despeja nos lençóis as nuvens cor de fogo”. “Num céu rosa e grená” (feminino e masculino). “E eu vejo um Boeing prata decolar”. Esta frase não remete a lembrança ruim. O decolar de um jato (o mais famoso de todos, o Boeing) nos associa a viagens, a férias, a prazer e não a sofrimento. A métrica da linha 14 é muito próxima, porém, a diferença esta no tipo de viagem. Vida e morte estão representadas nas linhas 7 e 14.
Segunda estrofe, linhas 8 a 14. Os sonhos são arrasadores. É o contraste com a primeira estrofe. Aqui a tragédia é total, é uma tragédia grega onde a desesperança leva à morte. “No mais sonhos e sonhos” como na primeira. Porém, com outro peso. “Meu quadro em alto mar, amarelado e turvo afoga o meu olhar”. Ter um quadro em alto mar, num mar amarelado e turvo, é ter a perda total do chão. Não há referência de localidade nem de tempo. Alto mar. Onde? Amarelado e turvo, é dia , tarde, amanhecer, entardecer? É o típico cenário de pesadelo. A lembrança é terrível. O olhar dele é afogado por lágrimas pesadas e escuras como o chumbo. Essa lágrima persiste, teima em continuar a aparecer. “A lágrima de chumbo insiste navegar”. A vida está desse jeito, nem aos sonhos ele poder recorrer para compensar a tristeza. O que lhe resta? Uma morte agradável e branca. Mas esse desejo de morte dura pouco tempo. Na terceira estrofe o protagonista se entrega a novos sonhos. Sonhos de esperança. A vida persiste em encontrar a esperança.

Terceira estrofe,linhas 15 a 22. esta é a parte onde entra a esperança do poeta. Na abertura das duas anteriores, linhas 1 e 8, existem sonhos e sonhos. Como visto acima estes sonhos são lembranças.
Agora a letra trata de outra fase do processo pelo qual passa o protagonista. A letra diz: “Planos ainda fazem parte dos meus planos”. Percebo uma abertura para os novos tempos que espera que cheguem, embora não identifique o que virá. Ele apenas diz que ele tem planos de fazer planos. Não há nada definido, pelo contrário, existe uma consciência de haver a possibilidade de novas dores e novas perdas. Ele está consciente, mas não está estático. Ele está renascido pela sabedoria que adquiriu: “A mais remota chance vale os danos enquanto o verde fruto avermelhar”. É o conhecimento das fases das metamorfoses: lagarta-crisálida-borboleta, ou semente-árvore-fruto.
A linha 19 é uma reminiscência às primeiras estrofes onde ele diz que o quadro dele estava perdido em alto mar, porém , aqui ele afirma que “planos suportam tempestades no oceano”. Ele está preparado para as dificuldades por acreditar no sucesso de seus planos.
As linhas 19 e 20 esclarecem em que ele se baseia para a nova fase de sua vida. Os planos suportam tempestades no oceano e “navegam a rota dos nossos enganos (e) desenham a trilha certa do amanhã”. O futuro pode vir, ele está pronto.
A última estrofe é a consumação da vitória sobre ele mesmo. Ele volta a falar dos sonhos, contudo de sonhos de vitória e de beleza. A noite das dores e incertezas desaparece com o Sol claro do amanhecer para uma vida nova. “Sonhos ainda fazem parte dos meus sonhos. Por mais que amadureça (ou envelheça) ainda sonho. E vago sem sair do meu lugar (o lugar conquistado pela vitória da vida sobre a morte, ou seja a sabedoria apreendida). Sonhos me trazem o doce mel dos beijos longos e deixam azul assim toda manhã”.
O sentimento do blues deverá nortear a intérprete sem, contudo, subverter a melodia. Há equilíbrio entre a tragédia o drama e a alegria de ver as manhãs ensolaradas e vestidas de azul.
Sonhos e Planos
Ivor Lancellotti

No mais sonhos e sonhos
E esse abajur lilás
Rodando feito um tonto
Despeja nos lençóis
As nuvens cor de fogo
Num céu rosa e grená
E eu vejo um Boeing prata decolar
No mais sonhos e sonhos
Meu quadro em alto mar
Amarelado e turvo
Afoga o meu olhar
A lágrima de chumbo
Insiste navegar
E eu vejo um barco branco me levar
Planos ainda fazem parte dos meus planos
A mais remota chance vale os danos
Enquanto o verde fruto avermelhar
Planos suportam tempestades no oceano
Navegam a rota dos nossos enganos
Desenham a trilha certa do amanhã
Sonhos, ainda fazem parte dos meus sonhos
Por mais que amadureço ainda sonho
E vago sem sair do meu lugar
Sonhos me trazem o doce mel dos beijos longos
Afastam as nuvens negras do abandono
E deixam azul assim toda manhã.