Ultimo Desejo

Último Desejo
Noel Rosa

Esta música, na primeira vez que a ouvi, com ouvidos de ouvir, na casa do João Carino, fui remetido a um sentimento de morte. Lembro que falei, meio sem pensar, “isso é um leito de morte”. Agora ao roteirizar a letra percebo que tive uma visão exagerada, mas não absurda.
Como uma licença poética posso aqui falar em Testamento. Este, em termos jurídicos é um ato personalíssimo, unilateral, gratuito, solene e revogável, pelo qual alguém, com observância da lei, dispõe de seu patrimônio, total ou parcialmente, para depois de sua morte…. e fazer outras declarações de última vontade.

Primeira estrofe, linhas 1 a 6:
1. Nosso amor que eu não esqueço
2. E que teve o seu começo
3. Numa festa de São João.
4. Morre hoje sem foguete,
5. Sem retrato e sem bilhete,
6. Sem luar, sem violão.
Na primeira estrofe, da linha 1 a linha 3, Noel revela o patrimônio testamental: “Nosso amor que eu não esqueço e que teve o seu começo numa festa de São João”. Este é o ativo que os dois, ele e a amada, tinham construído até determinada fase de suas vidas. As sentenças seguintes são a constatação do que há agora. Sem que seja explicado o motivo. Linhas 4 a 6: “Morre hoje sem foguete, sem retrato e sem bilhete. Sem luar, sem violão”. O que “morre hoje”? Morre hoje, lato senso, não necessariamente uma morte física ou emocional. Morre Noel? Acredito que não seja o amor, pois esse amor ele não esquece. Morre a possibilidade ou a viabilidade de haver continuidade no amor? Uma coisa me parece certa: não haveria volta após esse ponto ser ultrapassado.

Noel, em sua genialidade, faz o contraponto entre a festa que foi berço de nascimento do amor e o leito de morte desse amor. Se o amor teve seu começo numa festa de São João, em seu fim não haverá foguete comemorativo de festa. Não haverá retratos para registrar para a posteridade a felicidade deles. Não haverá bilhete com trocas de juras de amor. Não haverá luar que inspire canção de amor nem violão para compor. O violão está mudo. A fonte da inspiração está seca. É o início do fim para o poeta.

Segunda estrofe, linhas 7 a 9:

7. Perto de você me calo
8. Tudo penso e nada falo
9. Tenho medo de chorar.

A segunda estrofe, linhas 7 a 9, é para mim a mais impenetrável. É como se Noel houvesse construído uma cidadela inexpugnável, embora aparentemente transparente. Não é um escudo de cristal atrás do qual os tolos pensam que estão ocultos. É uma parede de vidro blindada, à prova das pedradas de desafetos ou da curiosidade de roteiristas. O que há ali é tangenciável, mas não é tocável. É como se ele dissesse: “você pode me ver, mas não pode me tocar”. Você pode intuir, mas não pode saber. Talvez a frase da linha 10 (da terceira estrofe) seja uma pista, ou um despiste. “Nunca mais quero seu beijo”. Novamente a genialidade, porém agora em sua total maturidade. Quero, primeira pessoa de presente do indicativo do verbo querer. Os normais falariam: “não quero mais o seu beijo” para indicar uma vontade de agora com repercussão no futuro. Ou, nunca mais vou querer seu beijo, onde a primeira forma está implícita. Mas Noel Rosa é flor da poesia e diz assim: “Nunca mais quero seu beijo” e assim eterniza o momento presente. Congela o tempo. Cria um estado de suspensão que a morte não atinge. Como de fato a morte de seu corpo não matou a sua arte. Este é Noel Rosa.

Mas volto à segunda estrofe, linhas 7 a 9, : “Perto de você me calo. Tudo penso e nada falo. Tenho medo de chorar” Não ouso roteirizar esta estrofe. Ela é por demais íntima. O choro que Noel teme chorar pertence apenas a ele a sua amada Que nessas frases a intérprete, se concordar, se cubra com os véus dos mistérios que seduzem.

Terceira estrofe, linhas 10 a 12:

10. Nunca mais quero o seu beijo.
11. Mas meu último desejo
12. Você não pode negar.

A terceira estrofe, linhas 10 a 12, traz uma belíssima forma de compactuar. É a acima citada “Nunca mais quero seu beijo”. Não é homem que não quer beijar por ser portador de herpes. É um tuberculoso próximo da morte. Os beijos dele poderiam trazer a morte para as mulheres, e ele sabia que elas sabiam disso. Muitas, provavelmente, evitaram o beijo que desejavam. Mas, e ele que poupou a amada com medo de contaminá-la? Um amor maior que o desejo físico? Ou teria ele visto um ar de temor segundos antes de ela beijá-lo? Parece uma frase emblemática: “você me deve essa, então cumpra o meu último desejo”. Não há chantagem, o que há é desespero e horror ante a impotência do que está por vir. E Noel apela, em última instância, “Mas meu último desejo você não pode negar”.

Linhas 11 e 12 da terceira estrofe: “Mas meu último desejo você não pode negar”. Na partitura do songbook do Almir Chediak, esta frase inicia com maiúscula. Se observarmos atentamente a música veremos que há uma pausa entre “…seu beijo e mas meu…”. Ou seja, existe um ponto. Então a conjunção “mas” está iniciando oração e, conseqüentemente está indicando uma relação com a idéia anterior. É o que a gramática determina. E não podemos nos esquecer que o Noel era oriundo de um colégio que dava formação sólida aos seus alunos. Ele sabia exatamente como escrever o que sentia.

A conjunção “mas” é a firma reconhecida no testamento. Na primeira estrofe, linhas 1 a 6, Noel fala do nascimento e da morte do amor do casal. Na segunda estrofe, linhas 7 a 9, ele demonstra claramente que tem um arrazoado que poderia expor. Contudo, perto dela ele se cala por ter medo de chorar. Noel parece estar dizendo: “Ninguém viveu a minha vida”; “Se nem mesmo eu que a vivi sei quais foram os verdadeiros motivos que me levaram a agir dessa ou daquela forma diante de determinada situação, como alguém pode me julgar?”; “Não fui apenas eu que errei. Entre cônjuges não há vítimas nem algozes, há apenas cúmplices”. É este acumpliciamento que lhe dá o direito de compactuar e expor o seu último desejo.

Quarta e quinta estrofes, linhas 13 a 24:

13. Se alguma pessoa amiga
14. Pedir que você lhe diga
15. Se você me quer ou não.
16. Diga que você me adora,
17. Que você lamenta e chora,
18. A nossa separação.

19. Às pessoas que eu detesto
20. Diga sempre que eu não presto.
21. Que meu lar é o botequim,
22. Que eu arruinei sua vida.
23. Que eu não mereço a comida
24. Que você pagou pra mim.

Na quarta e na quinta estrofes, linhas 13 a 24, Noel faz um jogo cênico digno de um autor teatral. Ele usa duas situações aparentemente contraditórias, mas que na realidade são complementares e de uma forma que só a poesia é capaz. No mundo da concretude, quando se somam duas partes isoladas e se chega a uma unidade, essa é maior que as partes que antes estavam separadas.

Noel faz o contrário. Ele pede que sua amada minta duas vezes. Para os que ele, Noel, ama e quer que continuem amando a ele, pede que ela exagere nos elogios a ele. Assim ele põe mel em suas bocas e um sorriso nos lábios dos que sabiam Noel, que sabiam como Noel era de verdade.
Para aquele a quem Noel detestava ele prepara a última dose de fel. Ele quer que os detestáveis, que não o sabiam, continuem a ignorar a sua alma. Só para prolongar a dor de quem conviveu com um gênio e não viu além do homem sem queixo e que era hemóptico, o escarrador de sangue. Para esses ele quer que a mentira, “Noel não valia a comida que comia”, os mantenha bem longe.

Ao final a genialidade do artista. Ao repetir essas duas mentiras ela, a amada que não pode negar seu último desejo, iria fatalmente perceber que ele não era nem tão maravilhoso nem tão horroroso e desprezível. Sua amada o veria como ele realmente era: um homem. Apesar de ser um gênio. Noel é gênio.

Quarta estrofe, linhas 13 a 15. Noel diz: “Se alguma pessoa amiga pedir que você lhe diga se você me quer ou não” e linhas 16 a 18 “Diga que você me adora que você lamenta e chora a nossa separação”.

É bem provável que Noel soubesse do seu real estado de saúde (acho que já falei isso). Ele fez essa música em 1937 e morreu em 4 de maio do mesmo ano. A composição e a sua morte são próximas. Contudo, ele usa os verbos de uma forma bastante sugestiva. Não posso me afastar da convicção de que Noel estava no apogeu de sua forma criativa quando fez esta música. E ele estava em péssimas condições físicas, tanto que pediu para o seu parceiro Vadico escrever o que ele ditava, ou seja, música e letra.

Ele emprega o verbo dizer (grifo das linhas 13 a 15) no presente do subjuntivo, ou seja, um presente subordinado, dependente de algo ou de alguma coisa. Um tempo presente que só havia dentro dela em razão do que fora compactuado no testamento. Ao que ela deve responder a quem lhe pergunta ele usa os verbos no presente do indicativo (lamenta e chora), linha 16 a 18 grifados. O lamentar e chorar não estão subordinados, dependentes de nada. Ela de fato lamentava e chorava verdadeiramente a morte do amado. É lindo. Dói em mim sentir agora que escrevo e imagino a dor que o poeta sentiu ao compor.

Quinta estrofe. Linha 19 “Às pessoas que eu detesto”. Linha 20 “Diga sempre que eu não presto”. Novamente a mesma forma de escrever a contraposição entre o presente de subjuntivo e o presente do indicativo. Novamente o mesmo pacto, o mesmo pedido. Linha 21 “Que meu lar é o botequim”; verbo ser no presente do indicativo. Até aqui a forma de compor é igual a usada na quarta estrofe. O que difere é o objetivo do poeta. Não dar chance para que os inimigos mudem de idéia. Afinal, quem passa a falar bem dos inimigos mortos? Mesmo os hipócritas só o fazem em público. Em seu íntimo continuam a falar mal.
Já na linha 22 “Que eu arruinei sua vida” e 24 “Que você pagou pra mim”. Os verbos grifados estão no pretérito perfeito. Num passado irremediável, perfeitamente acabado. Prova de que ele fala de morte.

Na linha 23 “Que eu não mereço a comida”. O verbo merecer está no presente do indicativo entre duas formas de pretérito perfeito. A comida que ele não merecia antes, por todas as sandices que fez em vida era uma coisa. O alimento de que o espírito dele se nutre agora, após sua morte quando tudo está consumado, é outra coisa bem diferente. Quando ele já não pode mais fazê-la sofrer a ponto de não merecer a comida que ela pagava é coisa do passado. O alimento que agora ele recebe, por acréscimo de amor de sua musa, é uma aquisição conquistada com o perdão e a compreensão que os mortos recebem de quem os ama.

“Se alguma pessoa amiga pedir que você lhe diga se você me quer ou não. Diga que você me adora que você lamenta e chora a nossa separação”. “Às pessoas que eu detesto diga sempre que eu não presto, que meu lar é o botequim. Que eu arruinei sua vida. Que eu não mereço a comida que você pagou pra mim”.E a amada diz, para si mesma o que todo amado pretende ouvir no silêncio dos que amam e se foram: “o meu homem foi é e será para todo o sempre o meu homem. Nem mais nem menos”.

Último Desejo
Noel Rosa
Nosso amor que eu não esqueço
E que teve o seu começo
Numa festa de São João.
Morre hoje sem foguete,
Sem retrato e sem bilhete,
Sem luar, sem violão.
Perto de você me calo
Tudo penso e nada falo
Tenho medo de chorar.
Nunca mais quero o seu beijo.
Mas meu último desejo
Você não pode negar.
Se alguma pessoa amiga
Pedir que você lhe diga
Se você me quer ou não.
Diga que você me adora,
Que você lamenta e chora,
A nossa separação.
Às pessoas que eu detesto
Diga sempre que eu não presto.
Que meu lar é o botequim,
Que eu arruinei sua vida.
Que eu não mereço a comida
Que você pagou pra mim.